SOBRE A INÉRCIA

CAP. II

O ônibus parou. Faz uma hora. Estático. Mudo. Faz duas horas. O motorista não pode abrir a porta tão longe do ponto. Ponto, exato, brusco, inventado. O homem de camisa branca sua. Leva em mãos uma sacola rota. De plástico. A camisa esta amassada. Tem bem marcado o calor. Suor. De tempo em tempo seca o rosto com a manga. É toalha. Suja. Inventada. O homem inventou o motor. Duas horas e vinte. Suou. O carro. A camisa. A manga. A toalha. Inverteu. Perdeu o sentido que a roda quis dar. Perdeu porque quis. Forçou. Insistiu. Curiosidade. Em sua sacola uma lata e um maço de cigarros. Suas mãos semi-escondidas. Manga. Toalha longa. Treme. Sua. Bate. Nunca róe unhas. Unhas lindas. Limpas. Dedos longos que se movem sem parar. Parar. Nunca. Quer descer. Quer andar. Os pés falam. Imitam os pensamentos, denunciam. Três. O sapato é como a sacola. Leva. Eleva. É sujo. Roto.
Estou desnuda ao caminhar pelas ruas. Meus olhos são seus, se você passa. Se não passa são de todos. Meus pés descalços pisam fundo nos cacos e sangram, que prazer sinto. Sou dor. No passo seguinte é um vazio no chão. É o infinito e a queda brusca. E como amo o medo. A queda. Meus lábios tremem de pavor. Seu corpo é frágil. Ë forte. É pintado de cinza. Pintado de amor. De pavor.
Sua nuca molhada, seu cabelo frio. Nada é meu, mas sou completa. O que resta não importa. O que é. O que tem, não quero. Sou. Meus pés se perdem. Meu rumo muda outra vez. São outros olhos, outra boca. É outro pavor. Em meu sangue corre o tesão pela vida. E corre a vida. Corre. Ando nua.
O bonito disso tudo é ver nos olhos dessa gente o medo do segundo seguinte. O inesperado faz a vida ser mais importante. Faz o momento ser surpresa. Eu amo essa gente aflita. Eu explodo. E corro. Eu grito e danço. Eu estou no meio delas. Sou uma delas. Delas. Meu coração bate acelerado. O carro vem. Eu volto. Saio de cena. O mundo entra. Na rua, essa imensidão me mata. Esse tamanho todo é meu. É meu amor.

E vem o homem maltrapilho, eu amo. E vem a mulher da saia roxa, apaixono. E vem a menina branquinha, eu canto. E vem o boné saltando, eu quero. E vem os cabelos brancos, eu gosto. E vem a banda tocando mambo, ah! como amo! Eu amo, amo e amo. E apaixono e morro e quero e grito!
Não vivo sem gente. Não sinto.



Estou tão fora de tudo isso. Desse mundo estranho, dessa gente chata. Tão fora, que acabo por saber que sou eu a estranha dessa história toda. E eu que amo tanto, sei que amor nao basta. Sou cheia demais. Cheia de desespero. Cheia de falta de coragem. Sem cacife algum para dizer simples NÃO. Sou rara. E sei que assim ser nao melhora nem resolve nada. Me pergunto. As perguntas me perguntam. Estou cansada. Sou cansada. E eu não me esforço. Nem quero. Me acostumei. São 20 anos. Foram todos assim. A vida é intensa. É imensa. É sem fim.
Esse caminho torto ainda me levará até mim. E nesse dia gozarei alegria. Serei, enfim, desmascarada. Será transparência, brancura e paz. Espero. Navego nesse barco que vai por um rio manso. Mas mansas não são suas tempestades. Passe logo, trovoada louca. Passe e derrube o mundo, mas aqui ainda estarei. Sobre esse barco raso ou sob essa água mansa, aqui estarei.

SOBRE A INÉRCIA

CAP. I

Fazia calor. Culpa do asfalto e do cimento. Calor. E o céu branco ameaçava. A quem? Por ali vinham milhares. Corriam sobre as linhas tracejadas. Suavam. Agora não corriam mais. Já não choravam. Eram tantos. E pararam. Só o calor não parou. Tudo ficou ali, sem sentido. Já não havia espaço, já não havia por que. O caminho já não era. A paciência também não.

Um a um, os homens que caminhavam sentados, levantaram. Colocaram os pés no chão e decidiram ir andando. Cada um para seu caminho. Cada caminho pra seu lado. E todos sempre juntos. Quantas bobagens pensaram até ali. Quanta coisa que começava a mudar.

Esse era o momento que esperaram sempre sem saber. O fim que era começo. O medo. O desespero. O passo em falso. O homem cru, desnudo de suas máscaras. Sua essência assustadora. Seu rancor e sua fome de ser. Estava tudo ali, finalmente.

Os pés seriam obrigados a suportar. A fome, a tremedeira, o medo, tudo tinha que ficar quieto. E quanto barulho. Agudo. Ensurdecedor. Enlouquecedor. O asfalto queimava, cheirava a borracha no fogo. Fedia. O suor derretia. O homem fazia barulho. Ou seriam os filhos do homem? Cansaço. Fadiga. Morte. Ali morreu muita gente. O darwinismo aplicado, a guerra.


vejo gente que passa fome. vejo gente que passa aperto. vejo gente que passa.
e eu não quero só passar.


sacoé?